Uma fábula adulta cheia de ação e sequências eletrizantes tendo como cenário o Sertão nordestino. Esse poderia ser o enredo de um livro sobre a batalha entre latifúndio e camponeses, de um filme brasileiro estilo bang-bang latino, algo como O Salário da Morte, do paraibano Linduarte Noronha ou mesmo O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, clássico do Cinema Novo de Glauber Rocha. Acontece que a obra em questão, o filme Reza a Lenda (Brasil, 2016. Direção: Homero Olivetto) não tem como proposta uma abordagem de viés político-social. Isso até aparece, mas muito sutilmente, um mero recurso ilustrativo que é quase irrelevante ao desenrolar da trama
O enredo gira em torno da história uma santa milagrosa, uma escultura sacra que, segundo reza a lenda, quando colocada no local certo teria o poder divino de trazer novamente a chuva ao Sertão, castigado pela fome e pela seca inclemente. Um bando de motoqueiros armados que acredita piamente nessa antiga crendice vai em busca da imagem redentora que trará de volta as águas ao solo sertanejo. A santa está sob a guarda de Tenório, uma espécie coronel moderno interpretado por Humberto Martins, que explora comercial e politicamente o fascínio que ela exerce sobre o povo e não se faz de rogado em usar os métodos mais violentos para recuperá-la.
Daí se desenrola toda a narrativa do filme, uma perseguição de “gato e rato” onde o Sertão e suas paisagens e tradições culturais servem de cenário e alicerce simbólico para o encadeamento das cenas e sequências mostradas. Reza a Lenda pega carona na esteira da herança cultural do cangaço, mas não se prende a historiografia oficial. O realismo é deixado de lado, o que vemos é um road movie (filme de estrada, em tradução livre, definição para filmes onde a ação do enredo acontece durante uma viagem, um percurso onde as personagens estão se deslocando) de ação com elementos de fábula sombria e misticismo atrelados a uma violência estilizada. Tudo, no entanto, posto da forma mais simplista possível, sem espaço para transcendências filosóficas ou aprofundamento dramático.
A proposta do filme é outra. Sua estética tenta se apropriar da linguagem dos filmes de ação épicos dos EUA, e as influencias são as mais diversas, desde o clássico Easy Rider, de Dennis Hopper, onde motoqueiros também aparecem em primeiro plano da narrativa, até a megaprodução Mad Max: Estrada da Fúria, de George Miller, salpicando elementos típicos da cultura brasileira e do ideário nordestino e sertanejo. Isso funciona até certo ponto, mas depois padece de deficiências evidentes como estrutura limitada e, sobretudo, inconsistências no roteiro.
A premissa de Reza a Lenda é boa, é instigante até. A ideia de fazer um road movie de ação e ocupar um espaço praticamente vazio na cinematografia nacional foi uma aposta ousada. O cinema brasileiro não tem tradição no gênero. Não obstante, o filme nacional com o maior público em todos os tempos, Tropa de Elite 2, de José Padilha, pode ser considerado um filme de ação, mas o interesse que ele despertou está também atrelado a temática de realidade social, uma combinação já bastante utilizada em filmes tupiniquins.
As produções que lideram a preferência do público brasileiro são os filmes de ação – mas os estrangeiros, a esmagadora maioria blockbusters hollywoodianos. Fazer um filme com a proposta típica do gênero e obter êxito nesse nicho comercial é um desafio. Muitos fracassaram fragorosamente, a exemplo de Segurança Nacional, de Roberto Carminati, e Besouro, de João Daniel Tikhomiroff. Reza a Lenda segue um caminho inverso – felizmente. Já na primeira semana de estreia levou 133 mil espectadores ao cinema, faturando R$ 2.059.998, de acordo com o portal sobre mercado de cinema no Brasil Filme B. Só entre os dias 28 e 31 de janeiro arrecadou R$ 820.065, segundo o mesmo site.
Os motivos do sucesso de Reza a Lenda podem ser explicados pelo enredo simples e envolvente, de fácil assimilação, sequências de ação tecnicamente bem realizadas, elenco carismático e seguro em cena e a combinação entre ação, ideário cultural nordestino e dinamismo gráfico. Nessa perspectiva, as sequências mirabolantes ganham a justificativa de um causo narrado por um contador popular: numa história que une paixão, aventura, violência e religiosidade. A direção do estreante Homero Olivetto é segura e conduz a narrativa com esmero e apuro visual, um olhar cuidadoso de quem tem um know-how publicitário e experiência no processo artístico de realização de produções audiovisuais.
A escolha do trio Cauã Reymond (Ara), Sophie Charlotte (Severina) e Luisa Arraes (Laura) como protagonistas, rostos conhecidos da TV, foi uma estratégia acertada para atrair a atenção do grande público. Humberto Martins como o vilão também vai nessa linha. Além do que, eles estão seguros em cena e defendem bem o drama e as justificativas das personagens que interpretam.
Os paraibanos Nanego Lira e Zezita Mattos tem participação pequena, mas notável, com destaque especial para Nanego, que interpreta brilhantemente Pai Santo, o líder do grupo de motoqueiros e uma espécie de guia espiritual à lá Antônio Conselheiro, que recruta jovens para a missão sagrada de recuperar a santa. A Vó Deinha de Zezita também é construída com primor pela atriz veterana (que logo, logo poderá ser vista nas telinhas da TV Globo na novela Velho Chico). Jesuíta Barbosa é outro que destaca como um dos integrantes do bando, com sua já conhecida performance sempre singular.
Com a visualidade cinematográfica bem trabalhada, sequencias de ação técnica e graficamente bem realizadas, performances consistentes do elenco, uma bela fotografia que retrata esplendidamente a paisagem do Sertão, montagem ágil e precisa, o roteiro é o calcanhar de Aquiles do filme. Apresenta vários furos, imprecisões e incoerências dentro da proposta do enredo e da narrativa. Algumas cenas são de uma incongruência e uma superficialidade latente, demonstrando o nível de fragilidade do argumento e da forma como o roteiro foi concebido. Nesse aspecto, poderia ser uma obra muito melhor.
O filme, no entanto, entretém e envolve, apresenta um resultado palatável, embora nem de longe extraordinário. Cumpre sua função, de certo modo, e tem o mérito de abrir espaço para produções do gênero no cinema brasileiro, praticamente inaugura um nicho no circuito comercial de exibição de filmes nacionais. Sua carreira exitosa nas salas brasil afora prenuncia um bom momento para que projetos melhores e mais criativos nessa linha possam surgir. Já é, dessa forma, uma expressiva contribuição.
Por Sandro Alves de França