O vínculo entre mulheres e mar soa como um clichê. São incontáveis as referências imagéticas e simbólicas que retomam esse encontro. O mar comumente é usado como representação visual de sentimentos articulados à trama: ondas calmas ou agitadas, águas cristalinas ou turvas, cores quentes ou gélidas são capazes de transmitir tanto serenidade e estabilidade quanto aflição e caos. Os elementos associados a essa paisagem ainda fazem por vezes referência à vida, remetendo ao útero, local de origem ou de retorno. O encontro do corpo com as águas pode instigar ou demarcar a concretização de mudanças em uma narrativa. 

Mulher Oceano, longa de estreia de Djin Sganzerla como diretora, poderia soar como uma repetição, no entanto, se dispõe a ir além. No filme, Sganzerla interpreta duas personagens, Hannah e Ana, uma em Tóquio, outra no Rio de Janeiro. As histórias dessas mulheres se desenvolvem paralelamente e o mar é o elemento comum que as interpela. Enquanto Hannah escreve um novo romance inspirado na relação de mulheres com o mar, Ana se prepara para uma longa travessia a nado. 

A trama introduz conflitos pessoais, profissionais e existenciais das personagens mas não tem interesse em aprofundá-los. A narrativa se dispõe mesmo a explorar sentimentos complexos e paradoxais que aproximam histórias tão distintas e distantes. O contraste das situações é favorecido pelo distanciamento espacial, climático e cultural, que serve também para evidenciar o que há de semelhante nas diferenças. Apesar do cabelo ruivo e loiro, do calor e frio, das luzes e sombras, da cultura brasileira e japonesa, as personagens contém uma a outra, como indica o jogo de seus nomes, assim como os oceanos são um só. O desapego à demarcação geográfica nas cenas do mar favorece a criação de uma dimensão espacial comum onde Hannah e Ana coexistem.

A agência dos corpos femininos que se movem é uma das potencializações do filme. Ana atravessa longas distâncias no mar e é observada de longe por Hannah, que por sua vez cruza o oceano, do Brasil ao Japão, para lá conhecer a tradição das ama, mergulhadoras japonesas que catam mariscos em águas profundas. Essas mulheres, mesmo que passíveis a imprevisibilidades, não esperam o acontecimento do destino. Elas agem, mergulham, nadam contra a corrente, encaram a agitação e a opacidade das águas sem se intimidar. A Mulher Oceano do título é mais que um encontro entre o feminino e o mar: ela é a intersecção das forças desses elementos.

Sganzerla, que não apenas é diretora e protagonista, como também produtora e corroteirista, junto a Vana Medeiros, proporciona uma experiência de contato íntimo com a obra dado seu envolvimento. Ela possibilita o acesso a nuances da subjetividade das personagens através de composições que exploram o sensorial, como o oceano projetado no corpo desnudo de Hannah ou os assobios que convidam Ana a imergir no mar. Ao trazer ainda a instância da espiritualidade expressa nos rituais do candomblé, do xintoísmo e mesmo no mergulho das ama, todos orientados pela relação com a natureza, o filme tensiona os aspectos visíveis e sensíveis articulados na sua construção narrativa.

As imagens, ainda que entreguem belas composições visuais, insistem em metáforas das águas: mar, banheira, piscina, mergulhadoras, nadadoras, pescadoras, livros e músicas sobre as ondas. Limitar-se a esse olhar superficial pode tornar Mulher Oceano fatigante. O mais atrativo do filme é o seu esforço de se apresentar e se fazer entender pelo contato, seja físico, espiritual ou sentimental. Sganzerla realiza um belo exercício de construção a partir das diferenças, aproximando elementos, mulheres, histórias e culturas sem a pretensão de decifrá-las.

Filme visto na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2021. Disponível no Prime Video.