Em março deste ano, o cineasta Kleber Mendonça Filho (Aquarius) recebeu uma notificação do Ministério da Cultura (MinC) solicitando a devolução de R$ 2.162.052,68. O valor da cobrança é referente a recursos captados para a realização de O Som ao Redor (2012), que venceu em 2009 um edital da Secretaria do Audiovisual para projetos de longas-metragens de ficção de baixo orçamento.

Segundo o MinC, a produtora Cinemascópio Produções Cinematográficas, comandada pelo casal Kleber Mendonça Filho e Emilie Lesclaux, teria captado um valor acima do autorizado pelo edital. O texto considera um longa de baixo orçamento obras que não ultrapassem R$ 1,3 milhão e destaca que projetos com valor acima do estipulado seriam recusados. No parágrafo sobre as vedações, lê-se que não é permitido o acúmulo do apoio previsto no edital (de até R$ 1 milhão por projeto contemplado) nem de “outros programas e/ou apoios concedidos por entes públicos federais, acima do limite de R$ 300 mil”. No caso de haver recursos federais complementares, o concorrente deveria comprovar a origem dos valores no ato da inscrição.

Em uma carta aberta endereçada ao Ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão, o cineasta pernambucano afirmou que o valor total para produção do longa, realizado entre 2011 e 2012, foi de R$ 1,7 milhão advindos dos editais federais do MinC (R$ 1 milhão) e da Petrobrás (R$ 300 mil), somados aos recursos estaduais do Funcultura Pernambuco (R$ 410 mil). Kleber Mendonça faz uma observação ainda quanto ao prêmio da Petrobrás, em que foram devolvidos R$ 271.805,00 para não desrespeitar o valor limite de captações federais.

O cineasta acrescenta que, antes de receber recursos do Funcultura Pernambuco, levou o caso à Coordenação de Editais da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura para esclarecer dúvidas sobre a participação em editais não federais. “A SAV [Secretaria do Audiovisual] afirmou, via email oficial, que a captação de recursos não-federais (no nosso caso, o Funcultura pernambucano) NÃO VIOLARIA os limitadores dispostos no edital de Baixo Orçamento em questão. Essa resposta está documentada (“Sim, o edital só veta recursos federais acima de R$ 300 mil.”). Nós nunca faríamos alteração de orçamento sem o acompanhamento das agências responsáveis, elas próprias regidas por regras internas duras”, escreveu.

Denúncias e cobranças

A denúncia que originou a notificação e cobrança a Kleber Mendonça Filho foi feita em 2017 ao Ministério da Cultura e ao Ministério Público Federal no Rio de Janeiro por um servidor da Ancine (Agência Nacional do Cinema). O denunciante também apontou possíveis falhas na conduta da diretoria da agência, presidida à época por Manoel Rangel, e que desde 2015 vinha encontrando resistência para aceitação de sua denúncia.

Em sua recente carta aberta, Kleber Mendonça questionou “por que a denúncia feita por um funcionário da Ancine encontrou sentido dentro do MinC, mas não na própria Ancine”. Segundo a Folha, o MinC disse que “analisou o caso à época e encaminhou as inconsistências encontradas para apuração dos órgãos de controle e demais órgãos competentes”, mas só em janeiro de 2017 o servidor da Ancine denunciou o caso à ouvidoria do ministério.

Kleber Mendonça Filho nas filmagens de "O som ao redor", em Recife (PE), em agosto de 2010. Crédito: Reprodução/Facebook
Kleber Mendonça Filho nas filmagens de O Som ao Redor, em Recife (PE), em agosto de 2010. Crédito: Reprodução/Facebook

A empresa proponente do projeto, a produtora Cinemascópio, foi comunicada sobre a cobrança no dia 29 de março de 2018. O montante de R$ 2.162.052,68 solicitado pelo ministério foi calculado com correção monetária sobre o valor total captado para “O som ao redor”, que, segundo a Folha, foi de R$ 1.709.978,00. O advogado de Kleber Mendonça, Fabiano Machado da Rosa, afirmou que a cobrança é “uma medida desproporcional, injusta e excessiva”, já que a principal cobrança do edital – a realização do filme – foi cumprida.

O prazo estabelecido para o pagamento venceu em 9 de maio de 2018. No dia 30 de maio, após a repercussão da carta aberta do cineasta, o MinC o respondeu com uma nota oficial em que afirma, entre outras coisas, que a SAV expediu uma nova notificação com “prazo de dez dias para recorrer da decisão ou efetuar o pagamento”.

Repercussão

Em sua manifestação, Kleber Mendonça Filho afirmou que não obteve retorno do ministro Sérgio Sá Leitão, nem por contato pessoal nem por contatos oficiais, para agendar uma visita e conversar pessoalmente sobre a acusação. Na nota oficial, lê-se que “jamais o MinC se recusou a dialogar com a empresa responsável pelo projeto” e reforça que “a parte notificada não é o cineasta, mas a empresa Cinemascópio”, impondo limites entre a comunicação direta entre pessoas físicas.

Nas redes sociais, circulou uma petição online criada por Wagner Moura, assinada por dezenas de representantes da classe artística, que recolheu mais de 4 mil assinaturas. O texto corrobora o pronunciamento de Kleber Mendonça e questiona a conduta do ministério de dificultar o diálogo direto. “Esperamos que o Ministro da Cultura receba em audiência o Diretor Kleber Mendonça Filho para estabelecimento do diálogo respeitoso e a reversão administrativa dessa multa infundada e injusta afastando, dessa forma, qualquer sombra autoritária de perseguição política ou de atentado à liberdade de pensamento e expressão”, finaliza o texto da petição.

Kleber Mendonça Filho ao lado do cartaz de divulgação do filme "O som ao redor". Crédito: Divulgação
Kleber Mendonça Filho ao lado do cartaz de divulgação do filme O Som ao Redor. Crédito: Divulgação

Já o MinC, em sua nota, informou que “rejeita veementemente a insinuação irresponsável e sem base nos fatos de que haveria ‘perseguição política’ e ‘atentado à liberdade de expressão’ no caso” e ainda que “questões externas ao fato gerador da denúncia, como a relevância da obra ou o talento e o prestígio de seus realizadores, não podem influenciar a tomada de decisão”. A referência se faz porque, em 2013, “O som ao redor” foi escolhido pela comissão do ministério como o representante brasileiro para concorrer a uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

Kleber Mendonça Filho e o governo Temer

O caso específico de “O som ao redor”, sem precedentes no MinC, não é o único episódio que envolve o cineasta Kleber Mendonça Filho e o governo federal na gestão de Michel Temer. Em 2016, a equipe de Aquarius e o próprio diretor ergueram cartazes de protesto contra o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, à época em curso no Brasil. O manifesto ocorreu no tapete vermelho do Festival de Cannes, onde o filme concorreu ao Palma de Ouro. Nos cartazes, lia-se que “um golpe de Estado aconteceu no Brasil”, “Brasil não é mais uma democracia” e “Resistiremos”.

Meses depois, em agosto de 2016, Aquarius recebeu classificação indicativa de 18 anos do Ministério da Justiça em sua estreia nos cinemas do Brasil. O ministério justificou a decisão apontado que o filme continha cenas de “situação sexual complexa”. Após manifestações contrárias à decisão e acusações de censura e penitênciao governo volto atrás e alterou a classificação para 16 anos.

Equipe de "Aquarius" protestou no tapete vermelho do Festival de Cannes em 2016 contra o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Crédito: Reprodução
Equipe de “Aquarius” protestou no tapete vermelho do Festival de Cannes em 2016 contra o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Crédito: Reprodução

Na sequência de polêmicas envolvendo o cineasta e o filme Aquarius veio a Comissão Especial do Oscar. O filme, considerado favorito para disputar uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2017, foi ignorado pelo MinC. O escolhido foi Pequeno Segredo, de David Schurmann, que não havia estreado nos cinemas e era desconhecido pelo público. Em contrapartida, Aquarius contabilizava dezenas de indicações e prêmios e foi eleito pela Cahiers du Cinéma um dos melhores filmes do ano.

A polêmica envolveu o convite ao crítico Marcos Petrucelli para integrar a comissão do MinC. O jornalista, que trabalhava como comentarista na CBN, atacava abertamente o filme e o cineasta em suas redes sociais, motivado principalmente por questões ideológicas e políticas. “A questão que vem sendo levantada pela imprensa e redes sociais é que o jornalista em questão, por posicionamento político, vem atacando há três meses Aquarius, filme escrito e dirigido por mim, e que o jornalista membro oficial da comissão já informou não ter visto”, escreveu Kleber Mendonça em uma réplica a respeito do episódio.

Verbas ameaçadas

Paralelamente à acusação feita contra Kleber Mendonça Filho, a Ancine enfrenta uma ameaça de paralisação na aplicação de verbas. Segundo o Estadão, o Tribunal de Contas da União (TCU) acusou a agência reguladora de falta de controle de gastos nos últimos anos. A Ancine administra o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e, em 2018, atingiu o valor recorde de R$ 1,2 bilhão, já que parte da verba de 2017 foi adicionada aos valores deste ano. O valor é investido na produção audiovisual e na manutenção ou construção de salas de cinema no País.

O ministro do TCU Marcos Bemquerer Costa identificou 20 problemas nas contas de 2016 da Ancine. Nas contas de 2017, as ressalvas permaneceram. O pedido de bloqueio das contas do FSA, no entanto, não veio de uma instância federal, mas da Secretaria de Controle Externo no Rio de Janeiro, órgão que representa o TCU no Estado, no final de maio deste ano.

O relator do caso é o ministro André Luís de Carvalho. Ele questiona a metodologia utilizada nas análises de contas e também critica o investimento anunciado para o audiovisual em 2018. “Chama a atenção o fato de o lançamento do Programa Audiovisual Gera Futuro, com previsão de aporte de R$ 1,2 bilhão ainda este ano, (…) ocorrer em pleno ano eleitoral e, para perplexidade, em um cenário de grave crise fiscal que aflige o País”, escreveu no despacho que dá sequência à investigação.

A Ancine reconheceu as falhas no controle dos investimentos, mas alegou que o diagnóstico já foi feito e que trabalha na melhoria do sistema de prestação de contas. A agência pede que o pedido de bloqueio seja substituído por um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Através desse documento é possível estabelecer medidas que devem ser cumpridas em um prazo determinado. Caso não se cumpram, as medidas de punição seriam mais graves, o que incluiria o bloqueio das contas do FSA.

Por meio de nota, a Ancine informou que já houve uma reunião com ministros do TCU “para explicar que medidas para sanar as inconsistências já estão sendo tomadas”. “O ideal é pactuar com o TCU um plano de transição para as novas regras sem a interrupção dos trabalhos atuais e futuros. A própria Ancine já fez um diagnóstico que chegou a resultados muito próximos dos detectados pelo TCU. Foram identificados 20 pontos de risco e já foram implementadas, a partir de abril, ações que visam sanar os problemas”, informa o texto.