Uma mulher bate à porta de uma estrutura de ferro durante um tempo suficiente para apanhar o plano aberto nos quatro cantos da tela do cinema. Apenas o som das punhaladas no portão vence a opulência do que a princípio parece um quarto banhado em chumbo e pronto para sobreviver a tsunamis. Mas aquela estrutura não se ergueria para suportar a força de uma causa natural vinda do mar, senão da mente. Olhando para a cena, a ideia de início se confirma quando a senhora de roupa vermelha, seguida pela câmera trêmula e subjetiva, acessa os confins do antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, um sanatório carioca escondido atrás das paredes metálicas, de onde se podia ouvir o som mais gutural do paciente submetido à lobotomia (uma intervenção cirúrgica no cérebro). Uma encenação sombria para introduzir o principal cenário da cinebiografia Nise: O coração da loucura (2016), encarnada pela atriz Glória Pires (Flores raras e Primo Basílio).

O espectador segue as passadas de Nise pelo Centro ao mesmo passo em que ela começava a explorar o local, ao qual ela chega como psiquiatra já anistiada após ser encarcerada pelo Estado Novo no Brasil — em vida, a alagoana foi presa pela ligação que tinha com o marxismo; na prisão conheceu o conterrâneo e escritor Graciliano Ramos, que a retratou no livro Memórias do cárcere. A montagem recria uma sociedade que restringe posições de comando, quase plenamente, aos homens e, no hospital, o olhar do diretor da película, Roberto Berliner, guiaria isso com a representação de uma palestra entre os médicos, sendo Nise a única mulher ali entre eles. A reunião havia sido marcada para anunciar os avanços da ciência, à época em polvorosa com métodos como a lobotomia e o eletrochoque, e para apresentar à equipe a nova companheira de trabalho. Era um primeiro momento da protagonista em embate político por ser mulher e por se negar à força como aliada à recuperação de “clientes” em estado psiquiátrico. Apenas o primeiro momento.

Nise se nega a operar nos internos as técnicas científicas a que assistira e recebe do diretor do Centro a única função que lhe restaria: coordenar o setor de Terapia Ocupacional (para onde alguns egressos iam cozer tecidos, em frase pejorativa dita por um médico no longa-metragem). A começar pela aparência de quartinho de despejos, a psiquiatra comanda uma limpeza na área hospitalar, na qual os enfermeiros aprendiam a reprimir com golpes físicos e psicológicos os ditos loucos. Aos palcos, consegue empatia dos “clientes” (palavra que substitui “paciente” no filme), mas não sem resistência. Fora o descrédito dos colegas de trabalho, a profissional tem de lidar com a fúria de pessoas presas e desacostumadas ao afeto, com ápice na briga com a reclusa Adelina (Simone Mazzer). Dá-se início a uma virada nessa narrativa sustentada a fio pela mudança de vida das pessoas através da arte.

Para a guinada, o roteiro não foge à figura de Almir Mavignier, artista plástico que instiga Nise sobre o valor da pintura e da escultura no processo de sanidade. Na prática, os dois abrem um curso improvisado de afrescos que se transformaria em um ateliê e ponto basilar na atuação profissional da nordestina doravante. A fotografia do filme ensaia essa virada temática nas cores, antes enrustidas em tons negros e pasteis e agora mais colorizada. E vão surgindo telas com um quê misto de impressionismo e expressionismo na mão de um torneiro mecânico e autorretratos pintados pela “violenta” Adelina. Por trás, a visão de pensadores do século 20, como o psicanalista Carl Jung (1875-1961), e o processo de retomada da comunicação essencial, artística. O “milagre” com que a personagem de Glória ia se deparando era a consequência de um tratamento menos doloroso (reforçado por exemplo na tomada que remete ao eletrochoque) e impositivo (no roteiro, com verbos no tempo verbal do imperativo: faça, sente). Salta aos olhos, onde brota arte, rodeia emoção.

Não fugindo ao clichê e concomitantemente recorrendo a ele para reforçar a ideia do afeto, alguns personagens começam a ter um envolvimento passional, como entre a estagiária de artes no ateliê comandado por Nise e o ex-desenhista Raphael (Bernardo Marinho); e, mais explicitamente, no triângulo amoroso composto por Adelina (sim, coadjuvante bem explorada na trama), Fernando (Fabricio Boliveira) e Carlos (Julio Adrião). Essa afetividade pessoal dialoga na montagem do filme com a trajetória das obras de arte dos internos. Como uma reconquista de si, o pincel é a arma que vence a doença, não o “quebra-gelo” — frase que Nise da Silveira fala a um colega médico em discussão. Interessante ressaltar que esse método cultural da médica apenas é reconhecido fora do centro clínico, pelo aval de um grande crítico de arte.

Por fim, o clímax de Nise: O coração da loucura vem à tona quando, já reconhecido externamente o trabalho da “doutora”, que também começou a ter a ajuda de animais no tratamento dos clientes, há uma matança de cachorros comandada pela direção do Centro Psiquiátrico Pedro II, cuja perda os donos dos cães, como o fumante Carlos, se exasperam. A semente contra a ciência da lobotomia, porém, já estava plantada e colhida na arte.

A arte e a psiquiatria são o mote do audiovisual, que pelo tom do coração, palavra que estampa no título, pode pecar por não detalhar ao espectador desatento a história de vida da personagem central antes e depois do período em exercício no hoje chamado Instituto Municipal Nise da Silveira (nem a relação conjugal dela com o marido é explorada, muito menos se deixa claro por que Nise foi presa anteriormente). A opção da película, distribuída pela Imagem Filmes e produzida pela TVZero, que levou o prêmio de Melhor Filme e Melhor Atriz no Festival de Tóquio de 2015, não acaba com a ternura e convence sobre o poder das artes, em um desafio que beira a metalinguagem e parece compreender a potência da cinebiografia.

Um postfácio

“Nós estamos pretendendo a recuperação de homens considerados farrapos para uma vida socialmente útil e talvez mais rica do que a vida anterior que eles levaram”. A declaração de Nise, que encerra a biografia dramatizada em questão, também abre os créditos finais do filme Postfácio: Imagens do inconsciente (2014), uma série de entrevistas feitas pelo diretor Leon Hirszman (1937-1987) nos anos 1980 e montada apenas nesta década por Eduardo Escorel. Hirszman morreu precocemente e não pode finalizar o trabalho. O Centro Cultural do Ministério da Saúde também faz um apanhado de vídeos engajados na figura de Nise da Silveira. Mas, em Postfácio, uma última frase poderia resumir o mote desta nova versão de Nise, pela criadora: “em qualquer indivíduo — mesmo no mais esfarrapado, mendigo egresso de um hospital psiquiátrico — existem forças criadoras, existem forças autocurativas esperando de apoio, esperando de amor, esperando de calor humano”.

Assista ao filme Postfácio: Imagens do inconsciente:

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