A dose que envenena pode levar à cura. Os antônimos veneno e remédio vêm de uma mesma palavra, que na Grécia Antiga nomeava um ritual catártico: para se livrar de problemas sociais como a fome – ou uma colheita malsucedida –, os gregos elegiam uma pessoa dita impura para ser presa ou apedrejada pelos companheiros. Ao fim, a vingança fazia efeito a curto prazo, como uma redenção ao “sacrifício” – à causa, no entanto, o golpe não surtia uma consequência duradoura.

Mas o que o pharmakos tem a ver com “Justiça”, minissérie exibida pela Rede Globo? A fina linha que separa (in)justiça de vingança. Apresentada como uma aposta inovadora da emissora quanto à linguagem, a minissérie de Manuela Dias (“Ligações perigosas”) se ambienta em um Recife atual marcado pelos conflitos de 2009. Quatro personagens engrossam o enredo principal, que tem atores como Jéssica Ellen, Adriana Esteves, Jesuíta Barbosa e Cauã Reymond em cena.

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No fundo, a discussão polemiza um princípio do Estado moderno, que é a escolha de uma força executiva (como a polícia em vários níveis: municipal, estadual e federal) que a todos pode julgar e punir. É esse papel do Estado que nos separa de práticas como a do pharmakos – mas nem sempre.

“Justiça”, apesar de ter sido gravada no primeiro semestre do ano, é exibida em um momento do país em que tanto as instituições políticas quanto sociais estão em xeque. A começar pelo impeachment que despôs a já ex-presidente Dilma Rousseff e levou às vias de fato o ex-vice-presidente Michel Temer, empossado por um grupo de seis parlamentares que, juntos, somam 76 ocorrências judiciais, segundo a Agência Lupa.

Nessas circunstâncias, há quem aponte Rousseff como uma neo-pharmakos, em um Brasil com maior desemprego e menos rubor econômico. “Pode não ter justiça na Terra, mas tem no céu, Deus está vendo”, invoca Fátima (Adriana Esteves), em contraponto.

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Efeitos

Como uma trama não é só fictícia e provoca efeitos na realidade, a história de Fátima, mulher presa por matar o animal de estimação de um policial, foi repudiada por meio de uma nota da PM do Rio de Janeiro. Na minissérie, o policial militar Douglas (Enrique Diaz) perde o cachorro e, como retaliação, “planta” droga na casa da vizinha Fátima, que acaba condenada a sete anos.

O mesmo Douglas, com um robusto passado de vilão, prende a única protagonista negra de “Justiça”, Rose dos Santos (Jéssica Ellen), motivado por racismo. Uma possível crítica à trama, que entra na segunda semana e tem 20 capítulos, é a virada de coadjuvante de Rose, que após ganhar a liberdade, decide ajudar a amiga branca – que, por consequência, foi salva do xadrez por Douglas.

Outro comentário que se aponta, propriamente por recifenses e pernambucanos, é a transformação de prédios históricos da capital, como o Palácio do Campo das Princesas (sede administrativa do estado), filmado pela Globo como um restaurante grã-fino. Analisando o dito (e não o que poderia ter sido dito), pode-se chegar à conclusão que o desmonte político e institucional do prédio máximo do governo estadual (agora bistrô) produz um efeito, em “Justiça”, que questiona o poder do Executivo e, assim, o poder do Estado que nos envolve.

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O questionamento do que é justo e injusto permanece nas histórias de Vicente (Jesuíta Barbosa), que pratica feminicídio, e Maurício (Cauã Reymond), que “mata” a esposa em ato de eutanásia. Tudo com uma profunda apreciação, ainda, a outra instituição do nosso tempo e sociedade: o jornalismo.

No Diário de Notícias (o jornal fictício da série), a prisão de Fátima foi reportada como “exterminadora de animais” e “traficante”. Ao dar margem à complexidade psicológica, “Justiça” polemiza a “verdade”, que geralmente significa a verdade da fonte oficial. Fátima, por sua vez, nem se quer era traficante e, na prisão, foi roubada da vida dos dois filhos, que viveriam em situação de rua pelos sete anos seguintes.

É senso comum dizer que a justiça falha. Não são poucos os exemplos que vão nessa direção. Mas, em uma sociedade injusta (seja social, econômica ou politicamente), pode ser ainda mais fácil chegar a resultados judiciais/jurídicos injustos, daí ser senso comum também (porém não justificável à base dos Direitos Humanos) querer fazer justiça com as próprias mãos, ou esperar a justiça sobrenatural, de Deus.

“Justiça” reflete esses meandros e é produto do seu tempo. Em um Recife ora elitizado ora periférico, a crise institucional e política transborda nas emoções das pessoas. E essas pessoas por trás das histórias (que viram manchetes nos jornais) podem experimentar tanto o veneno quanto o remédio, basta medir a dose.