Uma pesquisa de 2015 da ONG ActionAid revelou que 86% das brasileiras já sofreram assédio em espaços urbanos. Entre elas, 77% já receberam assobios e 57% ouviram comentário de cunho sexual. Não é difícil encontrar mulheres que comprovem a veracidade desses números. O documentário Chega de Fiu Fiu inicia sua narrativa com relatos em off de vítimas de assédio sexual. Elas relembram agressões verbais, psicológicas e físicas que sofreram em locais públicos. As vozes são tantas que se somam, confundem-se e ecoam pela cena rotineira da cidade.

Com uma equipe majoritariamente feminina, as diretoras Fernanda Frazão e Amanda Kamanchek realizam um filme compacto, com pouco mais de 70 minutos, e também poderoso na essência de seu discurso. A premissa é apresentada desde o título: “Chega de fiu fiu” faz uma explanação sobre as múltiplas formas de assédio e violências de gênero que, em diversas situações, são praticadas sem pudor e impunemente. A realização faz parte da campanha homônima, criada pela Think Olga, para denunciar o assédio contra mulheres.

Três personagens de diferentes regiões do Brasil são centrais na narrativa. São elas: a artista visual Rosa Luz, do Gama (GO), mulher preta e trans; a estudante de enfermagem e manicure Raquel Carvalho, de Salvador (BA), preta, periférica, lésbica e vítima da gordofobia; e a professora Tereza Chavez, de São Paulo (SP), mulher branca e de classe média-alta. É elementar à construção do documentário a diversidade de vozes e olhares, que não se restringe a essas personagens. A narrativa em si transmite essa pluralidade, desenvolvendo-se em três modos: a partir das histórias das personagens, das falas de especialistas, de uma câmera subjetiva e de uma câmera que observa.

A montagem alternada entre as diferentes perspectivas dá um ritmo fluido e conexo à narrativa, iniciando com o resgate histórico das mulheres na sociedade e concluindo com corpos femininos ocupando as ruas da cidade. A trilha sonora surge em momentos pontuais do filme, trazendo a voz de mulheres que cantam sobre o empoderamento feminino e abominam a violência de gênero. Na questão visual, enquadramentos cuidadosos não se limitam aos planos médios e fechados das entrevistadas. O sentimento de medo, palavra recorrente na fala das personagens, revela-se imageticamente nas ruas, escadarias e becos desertos, mal iluminados, ou nas silhuetas de homens desconhecidos que caminham em direção à câmera.

Para além das análises, relatos, denúncias e representação da resistência feminina, que encoraja as mulheres espectadoras a não se calarem e reconhecerem que não estão sós, Chega de Fiu Fiu se propõe a construir um diálogo com o público masculino. Apresentando dados e manchetes jornalísticas, Frazão e Kamanchek trazem a constatação de que, tão importante quanto falar sobre o feminismo, é falar sobre a masculinidade. As diretoras são assertivas ao distanciar a câmera para registrar uma roda de diálogo formada apenas por homens, brancos e pretos, de distintas realidades sociais, que refletem sobre as atitudes que consideram aceitáveis. A desconstrução de papéis e comportamentos dos homens cabe a eles próprios.

Nessa zona de conforto em que os homens interagem com semelhantes, a voz masculina reproduz discursos que escancaram a masculinidade tóxica. Um dos integrantes fala sem titubear que existem mulheres que “pedem” para serem assediadas devido à roupa que usam. A cena que precede esse momento traz Tereza Chavez mostrando roupas que estava usando em momentos que foi assediada: de saia ou de calça, o assédio aconteceu. Outro participante do grupo de homens considera inadmissível chamar uma mulher de “gostosa” no ambiente de trabalho, mas acredita que algumas, devido a roupa que usam, “gostam de ser assediadas”.

Com uma câmera escondida, uma das personagens ou uma das diretoras (a identidade não é revelada) caminha pela cidade. Assobios, buzinadas, sussurros e até mesmo um enfrentamento direto de um homem que se sente em seu direito ao encarar uma desconhecida porque a considera bonita. O uso da câmera subjetiva funciona para o espectador como uma comprovação prática das teorias, reflexões, dados e das histórias compartilhadas pelas personagens sobre o que é ter seu corpo objetificado. No entanto, o alcance desse recurso é restrito a uma realidade específica, não representando o que uma mulher da periferia, preta ou trans, por exemplo, enfrenta no espaço em que ocupa.

Esses dois olhares, do observador e do participante, são pontos altos da narrativa, pois apresentam quem são os assediadores. Não são monstros, mas sim homens integrantes da sociedade feita para homens, masculinos, e de uma cultura que consente com comportamentos nocivos, machistas e misóginos. Chega de Fiu Fiu investiga, denuncia, desconstrói e questiona. O documentário cumpre com excelência o papel de reunir vozes contra o assédio sexual e de fortalecer possibilidades de transformações sociais, seja por meio do debate, pelo combate ou pelas políticas públicas. O que se quer é que a violência não continue a passar despercebida.

O documentário Chega de Fiu Fiu foi selecionado para o FIM – Festival Internacional de Mulheres no Cinema e exibido na mostra “Lute como uma mulher”.