Guilherme Fontes — os olhos azuis de Otávio, n’O rei do gado; de Maurício, da Gente fina de 1990; e de Marquês Zenóbio Alfredo, em Cordel encantado — fez de Chatô, O Rei do Brasil (2015) uma obra em particular. Uma obra lendária — claro que não era de se esperar mais do que a condução lendária para um filme de duas décadas — mas também uma obra sobre a qual o diretor e ator se debruçou por muito tempo para descobrir e potencializar o lado ficcional por trás de cada personagem, real, que cruzou pelo Assis Chateaubriand das páginas da biografia homônima escrita por Fernando Morais na década de 1990.

Chatô, o filme, nasce de um projeto que custou metade da vida de Fontes. O lançamento de uma série de documentários e de muitos, muitos milhões de reais (em 2006, a Ancine colocou a empresa de Fontes, que captara a verba para o longa, na lista de inadimplência do governo com uma dívida que ultrapassava os R$ 36 milhões). As filmagens foram feitas em três tempos: 1999, 2002 e 2004. Mas a película ficou estagnada porque enquanto o realizador alegava faltar dinheiro, o incentivo privado e público que patrocinou o filme não o via jamais sair do papel.

Com a maturação do tempo, Fontes se senta novamente para montar o filme (que não tem todas as sequências previstas no roteiro) e faz o seu Chatô (Marco Ricca). Mais do que jornalista, advogado, político e afins, o personagem que guia a história só pode ser entendido em sua versão complexa. Ele ora veste indumentária de vaqueiro e peixeira nas calças, ora é pintado de tintas naturais e coroado com um cocar, ora aparece engomado em terno e colarinho branco em uma cela de prisão. O realismo mágico em Chatô é reforçado pela escolha da narrativa não linear, em que o começo, meio e fim podem ter sido apenas alucinações do velho Assis no leito de morte.

Ao mesmo tempo em que explora o lado mais ficcional da biografia de Chateaubriand, o longa-metragem traz um ranço de um nacionalismo das páginas oficiais da história, que pode ser lido como irônico. O “rei do Brasil” é praticamente um Macunaíma, um sertanejo grosseiro que se muda para a capital do país para trabalhar como copeiro; um lobo na pele de índio que dá festas pomposas em castelos europeus. Tudo alinhavado por um romance a três entre Assis, Getúlio Vargas (Paulo Betti) e Vivi (Andréa Beltrão).

A personagem Vivi abre, no filme, a discussão para o papel da mulher em meados do século passado. Ela é a única com importância no roteiro que não aparece dentro do seio de uma família e sobre a qual Chatô fala que “daria um ótimo homem”. Ela não tem o protagonismo de Getúlio, mas é quem arma esse protagonismo do ex-presidente e ditador nas cortinas; quem faz aliança política, no discurso e no sexo; e a mulher que asila Assis Chateaubriand em tempos de perseguição à empresa midiática que ele construiu. Outras mulheres de destaque, como Maria Eudóxia (Letícia Sabatella) e Lola (Leandra Leal), mostram um Chatô ausente, incompreensível e, em especial com Lola, criminoso, já que a compra da mãe da menina ainda virgem.

Mídia à exaustão

O magnata que foi Chateaubriand tem seu império representado na tela como uma grande crítica à imprensa brasileira. Importante pensar, antes de tudo, que o próprio diretor, Guilherme Fontes, é parte de um produto midiático de sucesso, de novelas que já lembramos e de que você deve lembrar. Fora da TV (Globo e Globosat), Guilherme também é ferrenho quando fala sobre a mídia. Em entrevista ao Assiste Brasil (que sairá em vídeo no nosso canal no YouTube em breve), o artista disse que a mídia o taxou de criminoso, ainda sobre o processo de captação de recurso para a película.

Nessa mesma entrevista (que também será disponibilizada na íntegra no site), Fontes retomou a discussão política atual envolvendo os nomes de Dilma e Cunha, presidente da República e da Câmara dos Deputados, na mesma ordem, posicionando-se contra o atual rito de impeachment de Dilma e relacionando-o a uma versão camuflada desovada pela grande mídia. Esse lado posicionado politicamente do diretor aparece no filme.

Chatô, o Rei do Brasil está sempre resgatando o jornalismo feito para dar voz àqueles que pagam anúncios e para dar manchete aos que garantem o poder político. O filme conduz a subida de Vargas ao poder como muito dependente da cadeia jornalística de Chateaubriand (dono de um império de comunicação impressa em todas as regiões do país). Outro ponto forte no sentido desse discurso é quando Chatô se vê repleto de dívidas e quase falido, a partir do momento em que começa a perder patrocinadores de um dos jornais. Ele, com o poder político e da informação, acaba com a reputação das empresas.

O império de Chatô, as brigas, (ex-)mulheres e a relação política aparecem tanto isoladamente na trama quanto em um programa da TV Tupi, que também pertenceu ao grupo de Assis Chateaubriand. É a realidade ficcional, mágica e midiatizada traduzida pelo reality show. Talvez só a realidade da mídia, a realidade dos palcos para dar seguimento ao filme que trata a vida de espetáculo e holofotes de um sertanejo paraibano, que se torna ele mesmo um espetáculo e que respinga a espetacularização para fora do quadrante, para o próprio Guilherme, também personagem nesse casamento com bodas de prata.

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