A cidade e o corpo estão intrinsecamente relacionados em “Mormaço”, primeiro longa-metragem solo de Marina Meliande. A narrativa fantástica desenvolve-se a partir de fatos verídicos e fortalece sua relação com a realidade através de registros documentais. Na trama, a defensora pública Ana (Mariana Provenzzano) atua contra a remoção dos moradores da Vila Autódromo pela prefeitura do Rio de Janeiro em virtude das instalações para as Olimpíadas de 2016. Enquanto isso, ela precisa lidar com a especulação imobiliária que ameaça transformar o edifício onde vive em um hotel e com as manchas misteriosas que surgem em seu corpo em meio ao caos.

É possível traçar um paralelo entre “Mormaço” e outros dois filmes contemporâneos: “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho, referenciando a personagem Clara através de Dona Rosa (Analu Prestes), a antiga moradora que se recusa a sair do prédio; e “Era o Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé, que reúnem atores e não atores, mesclando ficção e documentário. No entanto, Meliande acrescenta à discussão diferentes perspectivas sobre situações que se assemelham ao traçar paralelos entre realidades sociais distintas.

O direito à moradia e o direito à cidade são discutidos em condições contrastantes. Ana, moradora de um bairro classe média, acorda diariamente com o barulho de construção de novos edifícios que já não a permitem enxergar o mar e bloqueiam a circulação de ar em seu apartamento. Na Vila Autódromo, já entre ruínas, os moradores vivem sob ameaça constante do poder público, da força policial e da ação das retroescavadeiras que chegam ao local e derrubam muros que resistem.

“Mormaço” mescla cinema de gênero e o filme-denúncia para retratar um Rio de Janeiro de aparências que entra em colapso.

A maneira que as ameaças são feitas aos personagens expõem os privilégios da classe média e denunciam a invisibilização social. Ana, ainda que se sinta sufocada pelas construções, abandonada por seus vizinhos e, contraditoriamente, atraída pelo arquiteto da empreiteira, possuí uma gama de possibilidades de moradia. Já Domingas (Sandra Maria Teixeira), que representa a Vila Autódromo, não possui alternativas além de convocar o coletivo a unir forças e combater o poder público que invade e derruba suas casas sem pedir licença.  

Atuações não naturalistas causam certa estranheza, mas permitem desenvolver frases de efeito. “O que você faz quando não está desalojando pessoas?”, Ana questiona ao arquiteto da empreiteira, que tem uma função oposta a dela, e acrescenta: “Não sei se quero que você se sinta melhor”. Complementarmente, Meliande utiliza o impacto visual e o trabalho de som para despertar sensações físicas no espectador e incomodá-lo. Explosões e demolições criam uma cortina de poeira que domina o quadro e sufoca; uma mancha que coça e se espalha sem controle pelo corpo da protagonista causa repulsa; a chegada dos policiais e a destruição do muro com os dizeres “Acostume-se, nós vamos ficar” provoca indignação.

“Mormaço” é a convergência entre o cinema de gênero e o filme-denúncia de uma cidade feita de aparências que entra em colapso a partir da poeira da destruição, do abuso de poder e dos atos de violência. Meliande dialoga com a realidade, tanto na construção de seu universo fílmico quanto nas histórias e personagens que escolhe retratar, mas não se limita a ela, apresentando na doença, na destruição e na desesperança a expressão do desconforto.