Cada movimento, com ou sem bandeira, tem o seu imperativo, a sua sugestão, a sua ordem. “Vem pra rua”. “Assuma seus cachos”. “Adote um animal”. “Compre batom”. Laerte-se, além de ser o título dado ao primeiro documentário brasileiro original da Netflix, é também um imperativo. Se abraçarmos a palavra “Laerte” enquanto verbo, como o nome do filme propõe. Laerte-se é um imperativo em forma de convite, daqueles escritos à mão, sabe, e entregue pessoalmente a quem estiver disposto a recebê-lo. Não precisa gostar da festa – ou do filme -, mas Laerte-se se configura num convite irrecusável à revolução que a sensibilidade é capaz de reverberar.

O documentário é sobre a cartunista Laerte Coutinho, uma mulher transgênero (indivíduo que possui identidade ou expressão de gênero diferente da atribuída ao nascer). Três casamentos e três netos, cerca de quarenta anos de uma carreira premiada, sua identificação enquanto mulher e trans veio à tona aos quase 60 anos de idade. Produzido pela independente Tru3Lab, dirigido por Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum, Laerte-se é roteirizado pela dupla ao lado de Raphael Scire, com colaborações de Nani Garcia.

“Tô descobrindo, dentro do que existe do universo das coisas oferecidas pra mulher, aquilo que me serve, aquilo que me cai, aquilo que me expressa”, confessa uma Laerte íntima e cotidiana, como é desenhada no filme. O tom do enredo é dado pelas conversas “de sofá” entre a protagonista e Eliane Brum, jornalista e escritora, que inclusive aparece nas imagens de forma a compor o documentário, e não trazê-lo para si.

A cartunista Laerte Coutinho durante as gravações do documentário de Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum. Foto: Adrian Teijido/Divulgação

O filme traça um percurso que segue o ritmo da vida de Laerte. Às vezes só, às vezes gatos, às vezes família, às vezes vestido, às vezes quadrinho, às vezes São Paulo. Durante as gravações, a casa de Laerte está em reforma, o que se torna um gatilho muito especial posto sem medo no documentário, mas em doses homeopáticas. Enquanto a casa é ajustada ao tempo presente de Laerte, o desejo – não o dever – de colocar seios vem à tona, assim como suas questões de discussão urgente acerca do radicalismo no movimento feminista e, segundo a própria Laerte, o fascismo de determinados discursos trans-ativistas, mostrando que não apenas a vivência trans é algo particular, como a vivência enquanto mulher também.

Mais viva que nunca e ao mesmo tempo se sentindo “derrotada”, a relação conflituosa da cartunista com o movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais e Transgêneros), e em específico o das mulheres transsexuais, é narrado por ela mesma em diversos momentos do filme. “Quem quer estar na luta e representar precisa também estar em todos os lugares. Eu não sei, eu não consigo estar em tudo, minha energia vai acabando. (…) Tô me sentindo velha, tô me sentindo derrotada dentro de uma parte do movimento ou dentro do movimento. Qual que é o movimento? Existe um movimento?”.

O corpo de Laerte é casa para seus questionamentos, subjetividades e caminhos. Ela mesma diz, no filme, que “o corpo é uma parte de uma negociação complicada”. Estar no mundo, entre identificações com o outro e busca por uma identidade, é também estar sujeito a conflitos, em que os internos sempre falam mais alto. “A transformação genital pra mim é um pouco assustadora porque ela envolve uma revolução, quase uma batalha travada numa região”, diz Laerte no filme.

Ela não esconde, por exemplo, sua vontade de ter peitos através de cirurgia plástica, nem o seu incômodo com a chamada bolsa ou saco escrotal: “saco é um saco”, afirma. Mas suas vivências enquanto mulher transgênero com mais de 60 anos de idade a levam a perceber posicionamentos, dentro do próprio movimento LGBT, com os quais não se reconhece e, portanto, sente-se excluída do “clube”. “Há uma questão de carteirinha. É um horror isso”, dispara.

Às vezes só, às vezes gatos, às vezes família, às vezes vestido, às vezes quadrinho, às vezes São Paulo. Laerte em “Laerte-se”. Foto: Netflix/Divulgação

Dizem que a arte imita a vida, e no caso de Laerte, arte e vida se misturam, se pintam e se enchem de balangandãs. Através do personagem Hugo/Muriel, a cartunista traz desde 2009 a questão do crossdresser, do feminino, do ser mulher. Hoje, Hugo é, definitivamente, Muriel, e Laerte continua Laerte ao menos no nome. Suas tirinhas acompanham o desenvolvimento da mulher em si. “Tô fazendo uma investigação da mulher que eu posso ser”, afirma. Não buscando se resumir a um corpo, mas tendo consciência do que um corpo e suas vestimentas representam, Laerte e Muriel são criador e criatura de um feminino possível.

Em Laerte-se, os trabalhos de quadrinhos e pintura assinadas pela cartunista são parte do documentário, o que ilustra e reforça a personalidade curiosa, inteligente e sem tempo a perder da protagonista. Assim como em sua arte, o discurso de Laerte posto no filme não vem seguido de pontos finais e cortes bruscos. O silêncio, as reticências, o olhar que busca as palavras certas e mais honestas a serem ditas no momento em que é questionada, trazem a ideia de transição e fluxo presentes na vida e arte de Laerte. Ela não parece ser uma mulher que se resume em uma frase, ou tirinha, e inclusive se diz no filme “aterrorizada” com a ideia de que sua opinião sirva para orientar as pessoas. “Meu problema com charge era cagar regra”, confessa.

Por vezes discreta, quase escondida, em outras exibida, Laerte-se mostra a Laerte que assina as tirinhas e continua sua vida enquanto mulher, pai, amante e transgênero no mundo. Um registro lindo, atual, cheio de pele, de humanidade, sobre uma pessoa que de tão imperativa e em constante dinamismo, virou verbo. Laerte está velha, está reflexiva, está loira, está vestida. Laerte está nua, de saco cheio de ter saco. Laerte está avô, Laerte faz as unhas, Laerte tem gatos. Laerte está maravilhosa e isso é da nossa conta. Assistam Laerte-se.

Sugestão de produções audiovisuais acerca da questão de gênero e da transsexualidade no Brasil:

A série Liberdade de Gênero, dirigida e produzida por João Jardim, do canal a cabo GNT (Globosat).

Meu Nome É Jacque, documentário dirigido por Angela Zoé sobre Jacqueline Rocha Côrtes, mulher transsexual e militante.

Crítica assinada por Marina Brazil.