A autora e roteirista Manuela Dias, durante o programa Ofício em Cena, programa da Globo News, foi questionada sobre sua forma de escrever sob a supervisão de Duca Rachid em “Ligações Perigosas”. Em uma frase, sintetizou o seu maior objetivo: “eu não estou preocupada que as pessoas entendam, eu estou preocupada que elas sintam”.

Ao escrever “Justiça”, Manuela reafirma seu pensamento. A minissérie não fala de leis ou de diretrizes jurídicas que se aplicam à resolução de conflitos cotidianos. O tema central são os princípios e a moral de cada ser humano. E o anônimo é a melhor forma de mostrar esses acontecimentos que, por ora absurdos aos olhos de alguns, são brandos aos olhos de outro.

Contanto com a multiplicidade de interpretações, Manuela conta sua história. Não houve em nenhum momento a pretensão de narrar uma trama policial ou política, em que o certo e o errado prevalecem, que o óbvio acontece. Dessa forma, a autora assume a missão de desconstruir o pré-estabelecido, aquilo que achamos ser o habitual, o padrão.

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“Justiça” já é desconstruída desde sua ambientação. Um Recife obscuro, sombrio, precário, não tão colorido, sem vibração e folia que somos acostumados a ver. Não nos foi apresentado o Recife do carnaval, do maracatu e do frevo, das praias de águas claras. Essa ambientação obscura e sombria serviu para entrarmos no âmago do nosso ser e sentir tudo que viria aos nossos olhos para ser degustado.

Feito a primeira imersão para dentro de si, a minissérie nos apresenta um apanhado de músicas escolhidas a dedo. A trilha sonora também reflete um Recife sentimental, forte e doloroso. Hallelujah tornou-se o cartão de visita para abrirmos coração e mente e imergirmos em uma experiência audiovisual, mas também sensitiva.

A dor das personagens com as quais criamos empatia é intensificada ao som de Pedaço de Mim, O Que Será (A flor da pele) e Pense em Mim (este último regravado lindamente por Johnny Hooker). A brutalidade veio por meio de Revelação, Risoflora e Crua. Os romances foram derrubados com os versos de Los Hermanos em Último Romance, sem esquecer de Dona da Minha Cabeça e Amor Perfeito.

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Na atuação, atentemos aqui à desconstrução total dos atores em seus papéis. Para quem se acostuma às atuações de novelas ou até mesmo em outras minisséries da Globo, surpreende-se com a entrega intensa dos atores aos seus papéis, com uma desenvoltura excepcional em cena.

Adriana Esteves, sendo ela atriz de todos os papéis, merece destaque. O que fez com Fátima foi algo transcendental. Seu choro e sua risada conseguiram arrancar de mim risos e lágrimas, mesmo sem que eu percebesse. Mas não se pode deixar de fora as brilhantes atuações das mulheres da trama.

Déborah Bloch (Elisa), Camila Márdila (Regina), Leandra Leal (Kellen), Luísa Arraes (Débora), Drica Moraes (Vânia), Marjorie Estiano (Beatriz), Marina Ruy Barbosa (Isabela), Jéssica Ellen (Rose) e Julia Dalavia (Mayara). Todas elas mostraram a intensidade, da dor e da alegria, da justiça e da vingança.

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Do elenco masculino, atenção especial para as atuações de Vladimir Brichita (Celso), Enrique Diaz (Douglas) e Jesuíta Barbosa (Vicente). Cauã Reymond, que viveu o protagonista Maurício, incomoda de certa forma, talvez pela falta de entrega e imersão no universo de seu personagem, mas nada que prejudique o desenvolvimento de sua história.

“Justiça” deu voz aos princípios morais e fez questionar o sentido dessa palavra em uma sociedade que, apesar de ficcional, representa a realidade recifense e brasileira. A minissérie não só inovou em sua narrativa, como também desconstruiu o habitual. Ela marca o início de uma nova fase da TV aberta, que se esforça para se reaproximar do público que mudou a maneira de consumir produções audiovisuais a partir da migração para plataformas streamings. Que novidades surgirão por aí?

* Texto de Leandro Fazolli, amante do cinema nacional, roteirista iniciante, recém-formado em Roteiro de TV pela Academia Internacional de Cinema de São Paulo.