Antes de começar a ler este texto, tente se lembrar da última vez que você brincou. É bem provável que tenha que resgatar na memória os momentos de infância, época em que não havia responsabilidades, preocupações e todas aquelas “coisas de adulto”. Você também pode procurar entre lembranças e coisas antigas aquela sua foto de criança, uma de suas preferidas, em que provavelmente aparece brincando e sorrindo. Um registro que ficou na memória, ou impresso em uma fotografia, remete a um tempo de sua vida em que não havia hora certa para sonhar, fosse de olhos abertos ou fechados.

Agora, reflita: onde foi parar aquela criança viva, sorridente e lúdica que um dia você foi? Por que não brincar mais? Encontrar a resposta para essas perguntas talvez não seja fácil, assim como desconstruir a ideia de que brincadeira é “coisa de criança”. Mas é isso que Tarja Branca — A Revolução que Faltava, documentário de Cacau Rhoden, se propõe a fazer, questionando o processo de maturação do ser humano no mundo pós-moderno. Através dessas reflexões, inicia-se a busca pela resposta da importância do brincar na formação de uma criança e o impacto que isso trará para sua vida adulta.

Reunindo entrevistas com pesquisadores, psicanalistas, psicólogos, artistas, pedagogos e brincantes em geral, Tarja Branca comprova que a brincadeira é mais que um momento de diversão, mas sim uma etapa essencial para o desenvolvimento social e cultural do ser. No entanto, procurando preparar as crianças para um futuro competitivo e um mercado cada vez mais exigente, os pais trocam a hora da brincadeira por horários de aula extra. O resultado disso é a perda de equilíbrio entre o aprendizado lúdico e informal e o aprendizado formal e ditado.

Em vez de construir e aprender socialmente, através da interação interpessoal ou de experiências práticas, a criança do mundo pós-moderno, desde muito cedo, é pressionada a destinar o máximo de sua atenção para captar informações, decorar fórmulas e conceitos. Ela tem aulas em tempo integral e passa por testes que avaliam sua capacidade física e mental. Tudo isso contribui para a formação de um adulto precoce e preocupado com seu futuro, subordinado a horários de estudo e planos de vida.

O resultado dessa mudança de hábitos já pode ser notado nessa nova geração. O Brasil, por exemplo, é hoje o segundo maior consumidor de Ritalina, droga tarja preta que promete tratar o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. E os principais consumidores desse medicamento são crianças e adolescentes. Na vida adulta, outras doenças assombram o psicológico: a ansiedade e a depressão. Contra elas, outros tarja preta, ansiolíticos e tranquilizantes, como o Rivotril, um dos mais consumidos em território nacional. Segundo a Anvisa, entre janeiro e setembro de 2015, quase 18 milhões de caixas foram vendidas só no Brasil.

Esses dados explicam o porquê de “Tarja Branca”. O título trata-se, na verdade, de uma ironia aos tarja preta, que são vendidos com a promessa de tratamento contra a falta de concentração e foco, e até mesmo contra a tristeza ou insatisfação com a realidade de vida. A medicação natural, de “tarja branca”, seria justamente o resgate dessa criança interior que habita o lado humano mais natural e instintivo, livre de pressões ou de influências do meio institucionalizado, que tentar enquadrar e uniformizar o ritmo de vida de uma geração.

Para saber onde foi parar a criança que havia dentro de você, comece por desconstruir a ideia de que brincadeira é para quem não tem preocupações ou responsabilidades. Brincar é uma ação primordial à natureza humana, que, com seu espírito lúdico, estimula o aprendizado, a construção de um ser sociocultural e ainda é capaz de salvar dos males de uma vida adulta.

Publicado originalmente na Revista Administradores. 

[authorbox authorid=”2″ title=”Sobre a autora”]